sábado, 10 de janeiro de 2009

O FUNK NO CONTEXTO DA CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA


O funk no contexto da criminalização da pobreza


A cultura emerge como arena da luta de classes, como um espaço de disputa por hegemonia e de formulação de visões de mundo contra-hegemônicas. E se hoje há um lugar de onde é possível pensar construções culturais contra-hegemônicas esse lugar é a periferia


Publicado no Brasil de Fato, em 1º/01/2009

Adriana Facina* e MC Leonardo**


A produção cultural é hoje uma área da atividade humana que atualmente experimenta, em níveis inéditos, o avanço do capital. O termo indústria cultural aponta para esse vínculo entre cultura e produção capitalista e para a necessidade de fomentar uma práxis que se contraponha a esse poderoso instrumento do capital para garantir sua hegemonia. Assim, longe de se apresentar como uma esfera neutra e distante dos conflitos sociais, a cultura emerge como arena da luta de classes, como um espaço de disputa por hegemonia e de formulação de visões de mundo contra-hegemônicas.A tarefa de criticar a indústria cultural torna-se, nesse cenário, fundamental para projetos políticos que se definam como anticapitalistas. No entanto, ela não deve se limitar a uma negação dessa indústria, mas também incluir a formulação de propostas e iniciativas que possam apresentar alternativas à cultura hegemônica ditada hoje pelo capitalismo. E se hoje há um lugar de onde é possível pensar construções culturais contra-hegemônicas esse lugar é a periferia.Das artes que hoje emergem das periferias brasileiras, existe um fenômeno de massas que já deixou de ser somente carioca e se tornou nacional. Grito da favela, voz do morro cantando a liberdade, som da massa, o funk é um dos ritmos mais malditos da cultura popular brasileira. Seus detratores afirmam que o funk não é música, que seus cantores são desafinados, suas letras e melodias são pobres e simples cópias mal feitas de canções pop ou mesmo de cantigas tradicionais populares. Há ainda os que demonizam o batidão, associando-o à criminalidade, à violência urbana ou à dissolução moral. Ao criminalizarem o funk, e o estilo de vida daqueles que se identificam como funkeiros, os que hoje defendem sua proibição são os herdeiros históricos daqueles que perseguiam os batuques nas senzalas, nos fazendo ver, de modo contraditório, as potencialidades rebeldes do ritmo que vem das favelas.A história do funk carioca tem origem na junção de tradições musicais afrodescendentes brasileiras e estadunidenses. Não se trata, portanto, de uma importação de um ritmo estrangeiro, mas sim de uma releitura de um tipo de música ligado à diáspora africana. Desde seu início, mesmo cantado em inglês, o funk foi lido entre nós como música negra, mais próxima ao samba e aos batuques nacionais do que a um fenômeno musical alienígena.Fenômeno massivo desconhecido da classe média zona sul e da mídia corporativa, a notoriedade midiática do funk veio nos anos 1990 e ocupou não as páginas dos elitizados cadernos culturais dos jornais cariocas, mas sim o noticiário policial. Num início de década tristemente identificado com as chacinas de da Candelária e de Vigário Geral, foram os arrastões ocorridos no Arpoador e em outras praias da Zona Sul que deram visibilidade aos funkeiros. Criação midiática, os arrastões foram apresentados ao amedrontado público como assaltos realizados por bandos de funkeiros favelados. Na verdade, se tratavam de embates entre galeras oriundas de bairros como Vigário Geral, encenando na parte “nobre” da cidade os rituais já bastante conhecidos nos territórios além túnel.


A poesia da favela


Enquanto os bailes de corredor organizados por algumas equipes oficializavam os confrontos entre galeras, dividindo os bailes em lado A e lado B, fazendo da violência uma mercadoria lucrativa, fruto de uma sociedade profundamente desigual e opressora com os de baixo, um outro movimento surgia no meio do funk. Em meados dos anos 1990, donos de equipes e DJs começaram a organizar festivais de galeras, buscando canalizar em outras direções não violentas as rivalidades territoriais. Entre suas várias etapas que se assemelhavam às gincanas, os festivais passaram a incluir a etapa dos raps, músicas que deveriam falar sobre as comunidades de origem das galeras e também pedir paz nos bailes. O que surgiu daí foi mais um passo no processo de nacionalização do funk, que agora passava a contar com a poesia da favela, feita por aqueles que curtiam o ritmo e se identificavam com seus estilos de vida.Não há um pai ou mãe do funk nacional. Ele foi produto dos próprios funkeiros, veio diretamente do chão dos bailes. Em cima das batidas vindas dos EUA, como o voltmix e o hassan, juntando melodias de samba, cantigas de roda ou outras oriundas da música pop nacional ou internacional, os raps valorizavam as favelas e também denunciavam os problemas sociais e políticos do Brasil. Muitos deles vão também falar de amor e do próprio baile, da importância deste principal local da sociabilidade funkeira no processo de conquista da mulher amada.


Devastação neoliberal


A criminalização do funk, que resulta no fechamento da maioria dos bailes dos clubes no final da década, gerando dificuldades econômicas para seus artistas e o desaparecimento de grande parte das centenas de equipes de som que balançavam os funkeiros em todos os cantos da cidade, é parte de um processo histórico mais amplo. É o período de imposição da devastação neoliberal, que tem como uma de suas faces mais perversas a substituição do Estado de Bem Estar Social pelo Estado Penal, destinando aos pobres a força policial ou a cadeia. Abandonados os sonhos de uma incorporação à sociedade de consumo via emprego, restou à classe trabalhadora o lugar de humanidade supérflua e, portanto, menos humana do que aqueles que são considerados a “boa sociedade”. Quanto maior a desigualdade social, mais perigo para a ordem essa humanidade supérflua representa. A criminalização da pobreza e o Estado Penal são respostas a isso. Mas, criminalizar a pobreza requer que se convença a sociedade como um todo que o pobre é ameaça, revivendo o mito das classes perigosas que caracterizou os primórdios do capitalismo. E isso envolve não somente legitimar o envio de caveirões para deixar corpos no chão nas favelas, mas também criminalizar seus modos de vida, seus valores, sua cultura. O funk está no centro desse processo.Empurrado de volta para as favelas e condenado à ilegalidade, no final da década de 1990 e no início dos anos 2000, o funk se dedicou a cantar o cotidiano neurótico de seus moradores, seja fazendo das facções criminosas sua inspiração, seja cantando o sexo num estilo papo reto, sem romantismo nem meias palavras. Mais uma vez, de volta a polêmica. Cunhado de probidão, rótulo que mistura desde a apologia ao crime até músicas que simplesmente relatam uma realidade indigesta de forma nua e crua, esse tipo de funk rendeu inquéritos policiais, reportagens e muita polêmica.No tempo presente, se a paz reina nos bailes e os chamados “corredores da morte” são coisa do passado, o funk está distante de ser um movimento cultural aceito e respeitado, sobretudo pelo poder público. Hoje, a determinação legal de que a realização dos bailes funk depende da aprovação dos comandantes de batalhões da polícia militar responsáveis pela área faz com que seja praticamente impossível a organização desses eventos, com exceção dos espaços favelados nos quais essas regras não se aplicam.


Monopólio


Além desses fatores que poderíamos chamar de externos, dentro do próprio mundo do funk há elementos que impedem a expressão e a veiculação da cultura funk em toda a sua riqueza e diversidade. A indústria funkeira é um mercado fortemente monopolizado por poucos empresários, que dominam gravadoras, produtoras de DVDs, programas de TV e rádio na grande mídia. São eles que ditam a moda, usando do seu poder para não respeitar leis de direitos autorais, estabelecer contratos lesivos aos artistas (que, em sua maioria, iniciam suas carreiras quando são muito jovens e com pouco estudo) e descartando artistas que, ao construírem carreiras mais sólidas, se negam a se submeter a essas regras. Com isso, esse mercado passa a se pautar por uma lógica do descartável e da mesmice, evitando a construção de uma tradição musical funkeira mais sólida e, portanto, mais forte política e culturalmente.


Cultura popular


Apesar desse cenário, novos horizontes surgem no funk. Movimentos reivindicando leis que assegurem o funk como expressão cultural de caráter popular, impedindo sua criminalização; associações profissionais de MCs e DJs buscando assegurar os direitos desses artistas; discussões sobre raízes que tornem o funk menos refém do mercado e mais autônomo nos seus circuitos de criação e divulgação musical; organização de rodas de funk que, à semelhança do samba, busquem unir gerações, criando espaços de trocas de experiências e de sociabilidade entre os artistas; criação de circuitos alternativos de festivais, sobretudo nas favelas, buscando estimular a criação musical e fortalecimento do diálogo com outras tradições musicais populares como o samba e o hip hop. Todas essas e muitas outras não mencionadas aqui são algumas das iniciativas que estão postas na cena funk e que apontam para um futuro no qual o potencial de comunicação popular do batidão possa se expressar livremente.É preciso fazer aqui uma referência a Walter Benjamin em suas “Teses sobre o conceito de História”: “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialismo histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo”. Essa tarefa requer reviver no presente a tradição dos vencidos, daqueles que foram derrotados no processo histórico, mas que deixaram como herança suas lutas para os oprimidos de hoje.


Trazer a cultura que vem das favelas eperiferias para o centro da reflexão e da práxis militante é ir na contracorrente da história dos vencedores e não acredito em movimentos políticos realmente revolucionários que apostem numa visão elitista da cultura, compartilhando valores com a classe dominante e se recusando ao diálogo com essas formas contraditórias e potentes de expressão artística da classe trabalhadora.


"Diga sim ao movimento da música, na sua plenitude e realidade, mesmo que está esteja longe de seu mundo real"


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