terça-feira, 17 de março de 2015

O reascenso do conservadorismo no Brasil. Será este o saldo político da governança lulo-petista?

O conservadorismo político e cultural que é o óvulo fecundado do incesto entre os aparelhos ideológicos dominantes e da força da tradição encontraram na governança  lulo-petista a barriga de aluguel adequada para o desenvolvimento do feto conservador que re-nasceu para as ruas neste dia 15 de março de 2015. Um verdadeiro Frankenstein político.

Um espectro ronda o país: é o espectro da direita conservadora. A direita conservadora tem posto a cara a mostra, e pela primeira vez em 50 anos, tem tomado as ruas e ameaçado determinar os rumos da política brasileira.             Formada pela burguesia econômica, classe média alta e setores da classe média baixa, uma amontoado de componentes políticos, econômicos, culturais, étnicos, regionais e ético/morais, tem dado o tom do seu avanço nos mais diferentes segmentos da sociabilidade brasileira. Embora, muito diversa em suas manifestações e representações sociais, tem ganhado notável coesão nos últimos anos. O antipetismo e com ele a refutação de todas as expressões políticas e culturais de esquerda – direitos humanos, liberdades individuais, pautas minoritárias, políticas sociais, etc. – têm sido o nexo mais evidente de seu momento ofensivo prático.
            Faz-se necessário palmilhar os desdobramentos societários do transformismo sociometabólico brasileiro ao longo dos últimos 50 anos, a fim de que possa-se compreender minimamente alguns componentes históricos que fundaram essa nova objetividade social.  
Roberto Schwarz, num pequeno ensaio escrito entre 1969/70 – Cultura e política, 1964-1969, alguns esquemas[1] – chama a atenção para uma indelével anomalia na sociedade brasileira do período, que, apesar da ditadura da direita, havia relativa hegemonia cultural da esquerda no país. Concentrada nos grupos diretamente ligados à produção ideológica, ele cita estudantes, artistas, jornalistas, parte dos sociólogos, e economistas, arquitetos, a parte raciocinante do clero, etc., a ocupar inúmeros santuários da cultura burguesa. Esta situação criara no interior da pequena burguesia uma geração massiçamente anticapitalista e democrática. Tal hegemonia, circunscrita ao aspecto da produção e formação cultural – já que a ditadura civil militar detinha o domínio político, econômico e social – produziu uma geração de lutadores contra a ditadura, pela redemocratização do país e em defesa da justiça social.
Pode-se dizer que esta hegemonia cultural da esquerda durou até o final dos anos 1990, e junto com o ascenso do movimentos de massa e o catolicismo progressista da passagem 1970/80, cumpriu papel fundamental para o processo de democratização do país. Além, de criar um caldo político/social que retardou em torno de dez anos a implantação das políticas neoliberais no Brasil. A derrota de Lula em 1989 e o desmonte neoliberal da década seguinte marcaram seu declínio.  Talvez seu último grande suspiro hegemônico tenha se dado em torno das lutas no último biênio do governo FHC. O início do governo Lula parecia dar um alento de sobrevida, o que não acabou acontecendo.
Desde então, verifica-se o reflorescimento de dois eixos centrais do conservadorismo: o primeiro, é o orgânico, aquele clássico da burguesia com todos os componentes da iniciativa privada, meritocracia, teologias da prosperidade, teologias da auto-estima e empreendedorismo, teologias do consumo de marcas[2], liberalismo econômico, defesa do status quo, mérito de origem, etc. desenvolve-se a partir da mídia especializada, nas escolas e universidades, igrejas, etc.; o segundo, é difuso, compõem a formação histórico/cultural e abrange as classes populares, e tem haver com o machismo, homofobia, racismo, fundamentalismo religioso, moral, padrão de costumes, etc. Desenvolve-se pela força da tradição no cotidiano e também é estimulado e difundido por agentes especializados nos mídias, igrejas, universidades, e outros.
Quais os elementos fundamentais que demarcaram a queda da hegemonia cultural da esquerda e o desenvolvimento do ativismo político da direita conservadora?
É preciso deixar claro de antemão que a direita nunca esteve ausente da cena social-política da sociedade brasileira, mas seu ativismo nas ruas esteve ausente durante 51 anos, quando retorna quase nas vésperas de completar aniversário. A dura derrota sofrida pela esquerda na eleição de 1989, junto com a queda da União Soviética, e a consolidação da hegemonia neoliberal no mundo todo, marcou a violenta inflexão do predomínio cultural da esquerda no Brasil.
O desmonte neoliberal dos anos 1990, e sua agenda ideológica de personificação do capital, esterilizaram dos aparelhos ideológicos burgueses, as principais possibilidades de reprodução e desenvolvimento de todo aquele potencial cultural que solidificara a hegemonia cultural da esquerda nas artes, nas universidades, nos teatros, cinemas, escolas, etc. O cerco à produção e a circulação das expressões culturais de esquerda se tornou ofensivo. Aos poucos, sobre  os auspícios da mercantilização que tomou conta de todas as esferas da cena cultural, todos os artistas, produtores e intelectuais foram, ou sendo adequados aos novos padrões da reprodução artística, voltadas exclusivamente a venda de um produto rentável com a expurgação do elemento crítico, ou posto a margem do processo produtivo e de circulação cultural. Junto com a eliminação do elemento crítico, a criatividade artística e intelectual também sofrera um duro golpe. Isso não quer dizer que não tenham havido importantes produções de profundo valor estético, artístico e intelectual a partir de então, a hipótese sugere que  num período de transição, essas manifestações passaram a ser marginais.  Os santuários da cultura burguesa, onde outrora a esquerda dava o tom, foram um a um sendo reapropriados culturalmente pelo complexo ideológico/cultural burguês/conservador. Desarmando o antídoto político do conservadorismo que passou a desenvolver-se livremente.
No campo do trabalho e da organização social as transformações da era neoliberal não foram menos dramáticas. A flexibilização e precarização das condições de trabalho e o desemprego crônico quebraram a espinha dorsal da estrutura sindical criada nos anos 1980. Soma-se a isso um processo intenso de onguização da sociedade civil e a burocratização dos aparelhos sindicais e partidários, retirando os potenciais progressistas e viabilizando um profundo transformismo nos setores predominantes da esquerda organizada.
A partir da eleição de Lula setores da burguesia e a classe média tradicional se rebelam contra a afluência social, mesmo que estanque. O que em 1964 foi contra as reformas e o “comunismo”, a partir de 2003 passa a ser contra as políticas sociais focalizadas e o “bolivarianismo”[3]. No entanto, no caso brasileiro, a afluência social fraca e despolitizadora aprofundaram o intenso desmonte que as organizações da classe trabalhadora já vinham sofrendo desde os anos 1990.
O lulismo como resultado de uma política de alianças deveras heterogênea e interesseira, acimenta um campo político incapaz de fazer reformas estruturais – portanto, incapaz de mobilizar e politizar a classe trabalhadora – e compila uma gama de políticas sociais contingentes, voltadas para a expansão do mercado interno. Intensificando a entrada de amplos setores das classes subalternas na lógica estritamente mercantil pelo aumento do consumo[4], criando novas e eficientes pontes de integração do conservadorismo político com o cultural. Relegando aos aliados conservadores a tutela política de contingentes importantes das massas populares, em troca de apoio político. Evidências como estas da Convenção Nacional das Assembléias de Deus[5], em que o Pr. Marcelo Crivella, ao lado do então Ministro Gilberto Carvalho, proferiu para 3.000 pastores que eles deveriam aplaudir Lula e Dilma por ajudarem os pobres, assim eles pagavam mais dízimo[6].
O “choque de capitalismo” promovido na era lula, no intuito de cumprir sua tarefa de reparação do atraso empreendeu um programa de desenvolvimento prenhe das maiores contradições, demarcando seu próprio limite de transformação e potencializando seu campo opositor mais ferrenho. Estava em curso uma nova etapa da modernização conservadora, retardatária e decadente.  Que apesar das melhoras pontuais, mas muito importantes, das condições de vida dos amplos estratos mais vulneráveis da população, abandonou-os politicamente aos ditames da sociabilidade mercantil, sob a tutela da agitação política e ideológica dos antigos e novos agentes conservadores, com seus robustos e eficientes aparelhos privados de hegemonia. Aos poucos a miséria econômica que vai sendo reduzida a patamares menos trágicos vai sendo contemplada por novas misérias humanas decorrentes da aceleração da vida social nos complexos urbanos, criando novas inquietações existências e carecimentos radicais[7] nas individualidades pessoais de classe.
A partir da segunda metade de 2011, com a ampliação das manifestações das frações da classe trabalhadora mais precarizada, um complexo sistema repressivo é montado pelo governo Dilma. As repressões cruéis nos pátios das grandes obras, nas periferias das grandes cidades, no trato da questão indígena, nos protestos estudantis de 2013 e nos protestos contra a Copa no Brasil, transformam-se na maior política social da presidenta Dilma. Encarregada de gerir o esgotamento programático da gestão lulo-petista.
Incapaz de mobilizar progressistamente as forças sociais da esquerda, o lulo-petismo, como um monocultivo de eucalipto[8], impede que qualquer força alternativa à esquerda se desenvolva em seu território. Esta esterilização é exclusiva para forças progressistas potencialmente autônomas, inclusive as existentes em sua própria base política (PT, CUT, UNE, MST, etc). Quando mobiliza o que resta de sua base política histórica, o faz sob a mais absoluta falta de honestidade, como nos três casos recentes: a campanha da Constituinte Exclusiva, nascida num blefe da presidenta Dilma em Junho de 2013, uma impossibilidade completa diante da correlação de forças atuais, além de ser um risco sério de regressão; na campanha eleitoral de 2014 com a peça publicitária do Coração Valente, imediatamente desvelado sob um pacote de ajuste fiscal e retirada de direitos; e a última, que aconteceu no dia 13 de março de 2015, com a realização de várias manifestações em defesa do governo acuado frente à ofensiva da direita, blindando qualquer possibilidade de uma crítica contundente ao seu pacote neoliberalizante, o único Golpe realmente em curso no Brasil.
O conservadorismo político e cultural que é o óvulo fecundado do incesto entre os aparelhos ideológicos dominantes e da força da tradição encontraram na governança  lulo-petista a barriga de aluguel adequada para o desenvolvimento do feto conservador que re-nasceu para as ruas neste dia 15 de março de 2015. Um verdadeiro Frankenstein político com os mais variados matizes: liberal clássico, liberal democrático, sociais liberais, trabalhadores e comerciantes autônomos e descontentes com o governo federal, liberal conservador, liberal porra-loca, fascista, neonazista, autoritários, xenófobos, trogloditas abomináveis (Bolsonaro), skinhead de direita, golpistas, racistas, etc. Fica-se a torcida para, ao menos que sejam hegemônicos os setores menos conservadores, e que mais medidas regressivas do governo federal com sua total falta de habilidade política não joguem ainda mais frações populares nesse turbilhão bizarro.
A peça de humor no estilo Sensacionalista[9] aplicada nas redes sociais neste domingo fatídico, em que numa suposta entrevista, o cantor Latino[10] afirmaria não estar preocupado com um novo Golpe Militar, pois se isto acontecesse, ele seria o Chico Buarque da nova ditadura, não é de todo descabido. Aliás, é deveras sintomático da tragédia social em que se encontra a esquerda brasileira cinco décadas depois em plena ditadura civil militar ela ter mantido firme a hegemonia cultural de valorosa qualidade.
Será este o saldo político da governança lulo-petista?

João Pessoa – PB, 16 de março de 2015
Luiz Fernando Ribeiro da Luz

[1] SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar – ensaios selecionados. Companhia das letras, São Paulo, 2014.  In.  http://www.companhiadasletras.com.br/trechos/85141.pdf


[2] O professor Giovanni Alves usa essa terminilogia pra tratar das transformações sócio-metabólicas da sociabilidade brasileira na década de 2000 em Neodesenvolvimentismo e a nova miséria espiritual das massas no Brasil. “tríplice teologia do neodesenvolvimentismo, isto é, as teologias da prosperidade, as teologias da auto-estima e empreendedorismo; e as teologias do consumo de marcas.” http://blogdaboitempo.com.br/2014/07/07/neodesenvolvimentismo-e-a-nova-miseria-espiritual-das-massas-no-brasil/


[3] Hipotética possibilidade de integração latina-americana contra o imperialismo neoliberal. A década de 2000 apresentou a eleição de uma série de governos progressistas na América Latina, foi colocado em marcha pelo presidente venezuelano Hugo Chaves um projeto ambicioso de integração latino-america que tinha como eixo de desenvolvimento central a criação de um banco regional de desenvolvimento UNASUL. Lula nunca avalizou sua criação, mantendo-o em banho-maria. Consequentemente, estava dado aí o limite da expansão progressista sonhada por Chaves. Quase todas aquelas experiência passam hoje por uma crise grave, com nova ofensiva imperialista.

[4] O que Rodrigo Castelo vai chamar de Social Liberalismo. “... uma ideologia de manutenção da ordem capitalista que embasa uma série de intervenções políticas nas expressões da “questão social...”. CASTELO, Rodrigo. O social liberalismo: auge e crise da supremacia burguesa na era neoliberal. Expressão Popular, São Paulo, 2013. p. 276.

[5] Conjunto de Igrejas que difundem intensamente a teologia da prosperidade junto com outras doutrinações conservadoras.

[6] http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lula-e-dilma-ajudam-os-pobres-que-dao-mais-dizimo-diz-ministro-da-pesca,1012125

[7] As expressões são de Giovanni Alves.

[8] Também chamados de deserto verde, os monocultivos de eucaliptos são conhecidos por eliminar toda a fauna e a flora em sua área de abrangência.

[9] Um site de humor que parte nomes e assuntos em evidência para sugerir os contornos mais inusitados.

[10] Latino, curioso nome artístico de Roberto Souza Rocha (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de 1973) é um cantor de música pop brasileiro.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Construindo o fosso brasileiro: a crise da atual realidade e a fabricação midiática de uma crise histérica com ares golpistas


Construindo o fosso brasileiro: a crise da atual realidade e a fabricação midiática de uma crise histérica com ares golpistas

 

       1.A onda do momento o “protestismo golpista”

A nova moda alardeada pela Grande Mídia é o “protestismo” cujo mote é achincalhar o governo Dilma e o PT fazendo ventilar o engodo que o despejar de soluções mágicas reacionárias e golpistas resolveria qualquer crise a qualquer momento. A questão posta em pauta não é protestar (fato este legítimo dentro de qualquer estrutura social), mas é pertinente saber os motivos (com mínimo de senso de realidade) pelo qual se está se protestando sob o risco de ser mais um títere nas mãos de manipuladores de plantão! Todavia, o conhecimento mais pausando da realidade em tempos de muita conexão de (des)informação deslumbrada parece se tornar nula a construção sináptica reflexiva. Um velho filme acinzentado começa a se repetir, cujo enredo a história recente brasileira mostrou-se como termina de forma lastimável!
Imaginemos se, por hipótese, em pleno horário nobre, a Rede Globo mandasse todos seus telespectadores pularem da bela Ponte Rio-Niterói em nome da “pátria”? Seria a marcha para o grande rio de zumbis! Faltaria espaço para tantos suicidas voluntários diante daquela quilométrica estrutura fluminense. Em nome do Brasil, a pátria onde figuras que a classe média e boa parte deste pessoal neo-indignada adora achincalhar com a ideologia do colonizado, agora dizem que vão lutar pela nossa “pátria” (leia-se contra os pobres, contra Dilma e o PT e, também, contra tudo que é feio e bobo!).
O surto repentino de “brasileiros patrióticos” parece ser tão verdadeiro quanto uma nota de três reais. A onda do panelaço “gourmet” dos bairros nobres paulistanos diante do pronunciamento da presidenta Dilma em 08 de março foi um exemplo do quanto de reacionarismo patético ronda as alas mais reacionárias e burguesas da sociedade.  Temos assim, a sapiência escorrendo pelo nariz e pela extremidade do intestino grosso dos neo-indignados da Grande Mídia. Tal como a onda catártica de meados de 2013, o “protestismo” volta a se ensaiar mais uma vez como farsa diante de uma grande fogueira de desinformação e ilusões infantilizadas.
  1. A História como parâmetro
Em 1964, na fervura pré-golpe, tivemos manifestações em praça pública ditas “populares” com o rótulo “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, fato este que serviu de catapulta para a tomada do poder pela estupidez dos militares derrubando o governo do presidente João Goulart. O mote da “corrupção” e da suposta “ameaça comunista” eram frequentes na boca de seus participantes. Tais palavras de ordem desencadeadas por uma turba foi marcada por devaneios políticos alicerçados pelo poder da Grande Mídia da época. Ademais é falso dizer que tivemos um golpe “somente” militar no país, mas sim tivemos um golpe civil-militar no Brasil, cuja amálgama foi a adesão considerável de parcelas das classes médias e burguesia atrelada com a força opressiva e bélica dos militares.
A influência golpista dos Estados Unidos em fomentar diversos golpes não deve ser esquecida dentro na América Latina e, particularmente, no Brasil daquele período (casos emblemáticos aconteceram na Argentina e no Chile). Nunca nenhum grupo isolado em ondas golpistas conseguiu algum êxito sozinho. É preciso uma pré-estrutura para que, de fato, consiga ter “sucesso” a proposta de alteração radical da ordem vigente, ou seja, um golpe, propriamente dito o termo.
Recuando no tempo, dez anos antes, em 1954, onde a União Democrática Nacional, a UDN, e partidos da centro-direita forçaram um movimento golpista de tomada do poder fabricando uma onda de descontentamento midiática-popular contra o governo do presidente Getúlio Vargas. O resultado desta contenda contra a persistente fragilidade democrática nacional foi o suicido de Vargas e o país mergulhado em nova crise institucional. O coroamento das estruturas golpistas contra Vargas e a débil democracia brasileira ecoaram no golpe civil-militar de 1964.
Hoje temos muitas diferenças entre 1954 e 1964, e a onda dos “neo-indignados” se apresenta mais restrita, pulverizada e setorizada. Dilma não é nenhum Vargas ou Goulart (muito longe destas duas figuras centrais na política nacional), e também o PT não é uma estrutura tão frágil tal como foram seus partidos da época. Hoje os movimentos sindicais e os sindicatos, apesar dos pesares e com todas as contradições internas destas agremiações, se encontram mais fortes do que estava há mais de cinquenta anos atrás. A democracia brasileira se encontra mais consolidada, apesar de continuarmos a viver com enormes disparidades econômicas e sociais. Contra Dilma, os grupos do ódio apenas regurgitam a acusação, diga-se bem claro, sem provas, de que ela seja “corrupta, feia e boba”. Uma consistência tão firme tal como geleia de miolos moles! É na aposta da fraseologia infantil e da pouca aderência da memória histórica que a Grande Mídia e setores mais reacionários apostam suas fichas golpistas.
  1. A verdadeira crise sem retoques
A atual crise econômica é o resultado de um modelo que sofre duplo impacto: o desgaste em apostar na famigerada opção quase que estritamente neoliberal com algum viés social e a difícil conjuntura externa (ainda arregimentada pelo lastro da grande crise internacional de 2008). O Brasil conseguiu se “blindar” como pode da crise que grassou por todos os Estados Unidos e Europa, só que nenhum país da periferia capitalista consegue resistir por muito tempo, apesar dos avanços da economia brasileira dos últimos dez anos. A demanda reprimida deu fôlego ao consumismo do mercado interno com ajuda de diversos incentivos por parte do Governo Federal nas gestões dos dois mandatos de Lula e o primeiro mandato de Dilma. O resultado do esgarçamento da fórmula adotada de um modelo econômico abalado por crises internas e externas é a opção de Dilma foi apostar numa equipe do Ministério da Fazenda neoliberal e adoção de medidas impopulares, queixas generalizadas e de curto fôlego diante do quadro presente. Na falta de horizontes, optou-se pelo caminho requentado mais simples e o resultado é o que já se esperava: insatisfação popular e baixo crescimento econômico.
O golpista mote de Grande Mídia foi se apegar no caso da Petrobras. Os interesses por detrás de empresa estatal são tão enormes quanto profundamente obscuro. A pressão para que ela seja vendida não é de agora e muito já se tentou fazer a sua entrega para a tal “iniciativa privada”, principalmente nos dois governos do ex-presidente tucano, Fernando Henrique Cardoso. Sintomático que o mesmo partido, o PSDB, que mais queria entregar à estatal a preços de banana para a iniciativa privada se diz hoje tão preocupada com sua defesa da empresa. Curiosamente, a questão da novela mexicana em torno da corrupção envolvendo a Petrobras é apenas a cereja do bolo do mote de destruição política das estruturas de governo de Dilma atrelada a uma matilha eleita pelos próprios brasileiros dos piores congressistas dos últimos tempos. Dilma, na prática se encontra em dificuldades nas duas casas legislativas presididas por figuras do esgoto da política nacional.
Os recentes ataques especulativos através da alta crescente do dólar é um sintomático mecanismo de entender que o cafetão capitalismo financeiro do vampirismo rentista aposta da desestabilização do governo Dilma. A virtualidade do mundo financeiro contra a materialização do mundo dos que trabalham e sustentam este ciclo de operações de extorsões econômicas.
Ao invés de taxar grandes fortunas, o atual modelo econômico defendido pelo ministro Joaquim Levy é de preferir fazer o autista modelo de sobrecarregar com impostos os trabalhadores, cortar gastos sociais e recuar trabalhistas e, depois, redistribuir com serviços incipientes (para isto, dão o nome de “austeridade fiscal”). Paradoxalmente, quem mais deveria estar indignado com as políticas neoliberais de Dilma seriam setores à esquerda do espectro político, e não como acontece hoje, à direita e seus extremos insanos que sempre apoiou medidas de austeridade econômica que prejudicam sempre os trabalhadores em detrimento do desenvolvimento nacional. Daí a certeza que o movimento não é contra a economia do país, mas contra a figura política do grupo que atualmente está ocupando o poder (mesmo que não consegue governar sozinho).
  1. A campanha midiática de excitação ao ódio
Sobre as tais passeatas e os ódios expurgados nas redes sociais pedindo “impeachment” da presidenta é a prova da demência política que vem ecoando em setores mais extremos, antidemocráticos e estúpidos da sociedade. O PT deixou de ser um partido de esquerda do início dos anos 1980 para ser o maior partido ideológico dos anos 2000 de todo o continente americano. A vitória nas urnas e a ocupação de ciclo de poder no Planalto o tornaram vulnerável às intempéries inatas do poder e o natural desgaste da imagem do partido, levando em consideração a incessante campanha de destruição da imagem partidária perante um avançado monopólio de informações da grande elite econômica que forma o que chamamos de Grande Mídia. Em nome da tal “liberdade de expressão”, a permissão para expelir mentiras, falsas acusações e produzir toda uma campanha de excitação histérica de apelo ao ódio primitivo.
A arte de “ser governo” empurrou o PT para o minado campo de alianças com setores mais atrasados e reacionários do país. A aliança com o PMDB, o maior partido do país deriva de um emaranhado de interesses da elite dominante, foi o maior exemplo do retro-desenvolvimentismo petista e a opção por um governo cada vez mais dócil, conservador e passivo com os interesses que não estavam em suas bases históricas.
Sim, o PT tem culpa da crise que se atolou e deve refletir a respeito dos seus erros crassos. Mas não é exclusivamente culpado por todos os fracassos, fato este seria de uma extrema falta de senso político! O messianismo político é uma patologia dentro do imaginário popular o qual apenas resulta em ressentimentos, ódios e niilismos inúteis.
Se formos apontar erros do PT enquanto governo, certamente a opção pela “revolução cosmética” sem mexer nas estruturas fundamentais da sociedade brasileira foi um dos maiores erros do partido ao acreditar que fazer alianças com setores da direita e de grandes especuladores vampirescos, por si somente, seria garantia de estabilidade, lealdade e governabilidade. O preço da ilusão da “governabilidade indolor” foi a da fragmentação da legenda e a erosão do patrimônio ético e político do partido. As consequências são notórias e o desânimo de sua militância se tornou visível na dispersão de legendas de elementos que saíram de suas fileiras.
É fundamental ainda lembrarmos que no Brasil vive sob a égide do “presidencialismo de coalizão”, ou seja, nenhum partido governa sozinho e não consegue impor sua vontade se não angariar forças políticas (leia-se, aderência ao clientelismo fisiológico imediatista). Daí a dificuldade concreta entre o sonho idílico do “Lula lá” e a realidade do mote conservador do “Lulinha, Paz e Amor” (em alusão à flexibilidade de Lula para compor alianças políticas).
Diante de mais um horizonte com ares golpista no Brasil, é claro, que somente com o apelo à um carnaval da demência histórica promovido pela Grande Mídia para reviver um clima de 1954 e 1964 visando quebrar a norma democrática e jorrar ódios histéricos contra Dilma e o PT. É importante ressaltar que nenhum erro de Dilma, a figura da presidenta, até agora, justifica qualquer pedido de “impeachment” de um governo recém-reeleito pela maioria dos brasileiros. O campo das elites dominantes que nunca se conformaram com o PT no poder (a intolerância pelo seu significado simbólico), mesmo que o partido tenha feito concessões ao limite do inimaginável e os ganhos desta flexibilidade petista. Sendo assim, é mais fácil canalizar o ódio para uma pessoa um dado segmento social bem específico, ou seja, no caso, a presidenta e seu partido.
Todavia, é sintomático o ridículo de todo o teatro da burguesia que quer empurrar ideologicamente para a adoção de um pensamento reacionário sectário uma classe média desnorteada e abalada psicologicamente. Muito sintomático é o fato explícito dos veículos da Grande Mídia poupar todos os demais partidos políticos de direita e políticos mais reacionários do poder (como é o caso do mineiro ex-presidenciável Aécio Neves e o “queridinho” da Grande Mídia paulista, o governador Geraldo Alckmin), em particular, é visível a canonização política do PSDB como sendo a nova UDN golpista do momento.
Ainda que incipientes, as significativas conquistas sociais e o acesso a uma parcela que saiu da pobreza extrema para o consumo é, por si mesma, motor de um tipo de ódio narcísico e perverso da Casa Grande. Ademais, é sintomático que em parcela de emergentes narcíseos, a memória histórica do ambiente o que o sujeito surgiu é apagada por uma sanha de “novos tempos de bonança”. Em tempos de crise econômica, o medo de voltar ao estágio inicial de sua escalada diante da pobreza repercute de forma histérica e reproduz tons de brutalidade e ódio. Portanto, diante da crise, todos os gatos uivam como lobos. As queixas são desnorteadas e escorrem para o ralo de um autismo político que não geram demanda política com consistência: ao sabor dos ventos da manipulação midiática, o sujeito grita o que não entende e balança a cabeça pelo que menos entende ainda. É um ciclo do analfabetismo político explícito e patológico.
  1. Um turvo horizonte e saídas para a crise
Relembrando o grande pensador alemão da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, e a educação para evitarmos a barbárie. A falência da educação é a construção exponencial de “homens de bens” (a farsa conservadora do bom-mocismo) em ejaculadores de ódios, anteparos de fobias e carniceiros de sua própria existência. Neste fosso do autismo político, toda uma Alemanha bem esclarecida caiu no desejo de reconstruir sua estrutura narcísica e a canalização por parte um exímio orador, como Adolf Hitler e o seu grupo desfraldando uma bandeira pintada com uma suástica nos anos 1920 até final de 1940 (e ainda continua vivíssimo no imaginário e ações políticas do Velho Continente)! A crise alemã que desencadeou após a Primeira Guerra (1914-1918) foi fundamental para a histeria nazista tomasse corações e mentes de um povo que era considerado um dos mais cultos de toda a Europa.
As lições da história estão aí para serem aprendidas e, principalmente, refletidas. O autismo político às replicam no ápice da histeria e da demência do fanatismo social sempre em nome de uma elite que quase nunca sai dos alicerces reais do poder. A aposta de uma sociedade consumista sem lastro de cidadania construiu uma horda de brasileiros com concepções niilistas, uma passividade acrítica e de fácil mimetização aos discursos perversos de golpismos sem maiores reflexões jorrados pelas elites através dos seus mecanismos de comunicação.
Um exemplo da falência da Educação e da ação crítica de um povo, entre outras várias opções do estilhaçamento da cultura poderá ser visto nas estéreis e estúpidas programações televisivas, a cultura do hiperconsumo descartável e a histeria sintomática de pessoas e grupos alienados e motivados por informações deturpadas nas redes sociais. Ao contrário do que imaginava os mais eufóricos, a internet e as redes sociais não são “a revolução da informação”, mas sim, a extensão das mentiras, limitações e debilidades coexistentes nas caducas programações televisivas midiáticas nas mãos dos grandes grupos de ideologia dominante.
A manipulação de desejos e ódios continua tão viva e catastrófica tal como foi arregimentada no passado. Do ponto de vista político, Sem um acordo que busque uma coalização dos grupos mais progressistas e uma guinada para atender os anseios dos mais precisam do Pode Público, a crise poderá se estender com resultados mais desastrosos. O chamado “pacto social” dentro de uma democracia como a brasileira ainda é um dos mecanismos a serem operados em momentos de crise. Todavia é necessário, mais uma vez, que o Governo Dilma busque um novo pacto social levando em consideração as reais demandas dos brasileiros e as necessidades vitais daqueles que mais precisam ser cuidados e amparados e, fundamentalmente, buscando setores à esquerda, sindicais, movimentos sociais e setores mais progressistas da sociedade.
A selvageria em jogar grupos frágeis na esteira da crise econômica é o pior dos caminhos e o que repercutirá inevitavelmente em sintomas sociais de extrema gravidade de violência e marginalidade. A este respeito, temos na América do Sul, oriundo dos sinais visíveis dos nossos vizinhos, que tanto a Venezuela quanto a Argentina começam a sofrer diante das suas respectivas crises dentro de suas limitações de poder, forte insatisfação das elites econômicas locais com ares golpistas e problemas da produção interna e circulação da riqueza na economia.
É preciso que haja a calma necessária e a ação política mais enfática do Governo Federal, que busque se aproximar das esquerdas e dos movimentos sociais mais democráticos e legítimos, para que a profundidade do fosso não se torne um túmulo. As medidas necessárias ainda passam também pela democratização da mídia e a quebra do monopólio destas verdadeiras cadeias de comunicações reacionárias que expelem ódios primitivos e desinformação para toda a sociedade.



Por: WELLINGTON FONTES MENEZES é Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Bacharel e Licenciado em Física pela Universidade de São Paulo (USP), Professor universitário e de ensino médio.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Sobre o ódio e a tolerância na política


 A violência é uma característica constitutiva do Estado e, em consequência, também da política moderna.

No mundo moderno simplesmente não existe política sem violência, razão pela qual tampouco existe política sem ódio. No entanto, na eleição presidencial brasileira, os dois principais partidos denunciavam a política de ódio do adversário numa tentativa de legitimação como se, de fato, pudesse existir uma "política do bem". O comportamento equivale a clamar por justiça social numa reunião de banqueiros. A redução da política ao ritual da disputa eleitoral cada dia mais previsível, levou o Tribunal Federal Eleitoral à proibição da crítica ao adversário como forma legitima de toda atividade política. Neste contexto tanto o bem comportado comentarista da TV quanto setores das classes subalternas sentindo-se "desprotegidos" ou "vulneráveis", bradam pelo principio da tolerância que segundo a ideologia dominante deveria reger a atividade entre os civilizados.
Há certo invólucro moral no apelo ao amor e ao respeito como regra da política, mas a vitalidade do artificio deve-se sobretudo a operação ideológica pela qual seria possível evitar a violência e o ódio numa sociedade organizada a partir do ódio e da violência. Não se trata de determinação atávica, mas de um instrumento sem o qual a política moderna não funcionaria. Em termos vulgares, há certa reivindicação de trato cordial na arena cuja regra fundamental é o conflito de interesses, particularmente acentuada nas sociedades dependentes e subdesenvolvidas que contou, na esteira da expansão do capital comercial europeu do século XVI, com a necessária violência e racismo em sua formação, marca indelével de nossa evolução histórica e de nosso presente incerto.
Nas condições particulares da sociedade brasileira, é preciso reconhecer que a partir do evanescimento da identidade classista dos sindicatos combativos e dos partidos políticos de esquerda – PT e CUT na cabeça – as classes subalternas ficaram não somente desarmadas para enfrentar o conflito inerente à sociedade burguesa, mas, sobretudo, permaneceram cativa do discurso liberal – especialmente forte nos setores da classe média – para o qual não possuem outro recurso senão o apelo retórico a tolerância e ao "fim do ódio", ignorando o caráter utópico do discurso. Contudo, no lado da classe dominante são setores da classe média quem exibem sem constrangimento, com suas mãos delicadas, o ódio de classe contra os pobres, os proletários, contra os camponeses e tudo que lhes parece fora da normalidade burguesa ou da sociedade tradicional. Mais grave: no contexto atual parece que os proletários e os camponeses já não existem, pois o governo – com silencio cumplice dos tucanos – insiste no caráter classemedia da sociedade brasileira, como se Marx não fosse mais do que um retrato na parede, uma reminiscência histórica talvez lúcida, valente e apropriada para o século XVIII ou XIX europeu, mas completamente sem sentido na atualidade.
Trata-se da banalização da política como expressão do conflito para a qual contribuem não somente a renuncia precoce do PT e da CUT à identidade de classe – levando consigo os comunistas e socialistas da base aliada – mas também da redução da política a moral (vulgarmente tratada como se fosse simples udenizaçao do discurso político), onde a bandeira mais importante seria o combate a corrupção. Nestes termos, a tematização da corrupção chegou pra ficar porque diz respeito a real degradação dos partidos e, portanto, do governo. Mas chegou para ficar porque é constitutivo do Estado e, em consequência, é impossível ocultar seu caráter sistêmico. Ora, a astúcia do monopólio televisivo é clara, pois apresenta a estrutura como se fosse apenas evento! O ódio à corrupção, no entanto, é quase residual em relação aos empresários, pois se destina prioritariamente ao genérico "político", sem dúvida, um ardil liberal para não enfrentar o vaticínio de um barbudo agora suspenso em alguma parede: o estado é mesmo o comitê de negócios da burguesia. O político vulgar, o ex-sindicalista, o empresário exitoso, o liberal bem comportado, o acadêmico no conforto do campus, e tantos outros podem merecer o desprezo e ainda o ódio da classe média: este luxo da política não poderá, de maneira alguma, senão servir como álibi para a próxima operação de assalto ao estado no qual o capital também acumula.
Não é fácil ranger os dentes no terreno da política, reconheço. Mas não haverá outra saída para nós. Em termos sociais será lenta a reconstrução de um sentido e sentimento classista, a afirmação de uma identidade de classe, aquela mesmo que era apresentada como ultrapassada pelo pensamento conservador e reacionário, que iludiu muita gente boa. No entanto, aquela pressão que se exercia socialmente nos sindicatos combativos, na defesa partidária do socialismo era, mesmo quando pálida, a única capaz de tornar mais aceitável e racional todas as desavenças pessoais e justificar, em última estancia, o ódio individual pelo vizinho de porta ou de bairro. E agora?
Agora resta o confinamento parlamentar do conflito político e o exercício cínico da cordialidade típica do cretinismo parlamentar, enquanto nossos condenados da terra sangram em silêncio nas favelas e no sistema carcerário, no assassinato do líder camponês e nos milhares de mortes violentas tipificadas de maneira conveniente como "violência urbana", seja no transito ou no boteco da esquina.
Claro que a digestão moral da pobreza é ingrediente necessário da política da tolerância e do amor, afinal, o que pode o minguado bolsa-família num país em que apenas 5% da população concentra quase 50% da renda? A esquerda liberal acredita, de fato, que a cidadania esta em construção quando o índice de Gini se move em décimas? A eliminação de um horizonte utópico – o socialismo – cuja defesa deveria ser feita aqui e agora, alimentou ainda mais o irracionalismo da política em curso e exibe suas vítimas a luz do dia.
Em resumo, enquanto o velho ódio de classe desaparece do horizonte dos pobres dissipando antiga consciência de direitos e no momento que ganha destaque a ideologia da ascensão social nos marcos do capitalismo (seriamos finalmente um país de classe média!), é necessário acusar como engodo a possibilidade de fascismo entre nós. Ora, o fascismo é fenômeno histórico que emerge como arma da classe dominante em momentos de crise de sua dominação, quando esta já não é mais possível unicamente por meios parlamentares. Não estamos, portanto, nas portas do fascismo. No entanto, esta conclusão não autoriza a falsificação histórica, especialidade do jornalismo. Uma ditadura cordial ou "ditabranda" jamais existiu. A violência e o ódio de classe existente no Brasil são suficientes para manter as coisas no seu devido lugar, sem a necessidade de recurso ao programa fascista, razão pela qual seguirá orientando a ação do Estado e certamente contará com a tolerância, a aceitação dos governos e, no limite, a recusa calibrada dos mecanismos institucionalizados da repressão.
Nas condições brasileiras o mais provável no curto prazo é que o rechaço abstrato ao ódio e/ou a evocação igualmente abstrata à tolerância navegue sem obstáculos, ideologia necessária para que tudo mude desde que permaneça exatamente igual. Assim, o suposto ingênuo de que o Brasil é "um país da delicadeza perdida" seguirá também gozando de popularidade, ainda que não passe de tirada literária falsa. A despeito da delicadeza que ainda podemos encontrar em pessoas, a norma política nos assuntos públicos é mesmo a violência. Enquanto a maioria aceitar que "um mau acordo é sempre melhor do que o bom combate" – peça do conformismo político sempre apresentada como virtude e sabedoria política – a política e a democracia serão sempre lembradas como a arte de engolir sapos. De resto, a democracia liberal admite em seu interior a manifestação e o exercício da violência por parte do Estado e de forças sociais comprometidas com a ordem dominante. Não constitui anomalia e menos ainda um ovo da serpente quando um liberal desavisado ou grande parte da esquerda domesticada acusa que o ódio e a violência estão saindo dos trilhos. O antidoto real para os "excessos" produzidos pelo liberalismo não brotará da consciência social sem dentes para morder implícita na defesa dos pobres, mas de um projeto de classe – o socialismo – e o correspondente movimento de massas em sua defesa.

Por:  Nildo Ouriques 
Fonte: Diário Liberdade

sexta-feira, 6 de março de 2015

Sobre o "exército" da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) alguns apontamentos (precários, incertos e possivelmente abertos a mudança)

- Já falaram aqui, repito e endosso a opinião alheia, ainda que com outros elementos. Como dito por outros compas, enquanto a esquerda em sua esmagadora maioria foi brincar de conquistar cargos e aparatos eleitorais, as forças conservadoras ligadas ao neopentecostalismo se enraizaram nos subúrbios e periferias. Criaram redes de sociabilidade, onde oferecem serviços dos mais diversos e resolvem os problemas cotidianos de um setor da classe (cabelereiro, brechó, emprego, cultura, música, lazer). Enquanto isso a esquerda distribui santinho eleitoral nas áreas dos setores-médios ou foca suas atividades na conquista de aparatos sindicais e estudantis. Quem mora na zona norte do rio ou na zona oeste por exemplo, não precisa ser cientista social pra perceber que aqui quem manda é a direita.
- Contra-hegemonia. Não há nenhuma preocupação, com honrosas exceções, de criar um pólo (mesmo que minoritário) de contra-domínio de meios de comunicação alternativo. Olhem para o movimento vigoroso das rádios comunitárias no passado e veja em que mãos caíram esses instrumentos. Ou façam melhor: comparem um jornal sindical com um jornal de qualquer denominação religiosa. As pautas jornalísticas desses meios de comunicação neopentecostais dialogam e são muito menos dogmáticas do que as pautas herméticas da esquerda. Além disso, conseguiram ocupar canais de tv, rádios e instrumentos comunitários de comunicação.
- Mística. Numa tese de doutorado do Marcos Gaspar,("A falta que faz a mística") ele já demonstrava o quanto as igrejas evangélicas neo-pentecostais são habilidosas em dar para o povo aquilo que os sindicatos, espaços comunitários e organizações políticas perderam: o sentimento de pertencimento, a "mística", a mobilização emocional. Não como um rito performático mal-simulado, mas como algo que segundo o autor (minha livre interpretação, porque vou de memória) trabalha os problemas existenciais das pessoas. Não que devemos pautar a política da esquerda a essa questão, mas de fato, participar de um culto dá muito mais "tesão" se permitem a palavra apócrifa, do que assistir alguém falando sobre a sétima internacional. Enquanto as igrejas debatem os problemas amorosos, pessoais, financeiros e existenciais das pessoas (que as tocam tanto quanto as questões ditas "materiais"), a esquerda está discutindo problemas completamente endógenos e desconhecidos pela maior parte das/os trabalhadores.
- Trabalho de base comunitário. Aprofundando essa questão, as igrejas ocupam um terreno da classe, enquanto isso a esquerda faz atos centralizados, performances descoladas da experiência da classe e dialoga principalmente com uma "vanguarda". Num terreno de precariedade material e incertezas, estar ligado a alguma instituição minimamente sólida e estável, pode garantir canais de solidariedade razoáveis. Principalmente nas periferias. E quantos canais comunitários de esquerda que se enquadram nesse perfil de algo estável e com credibilidade no território os/as trabalhadores/as em disputa podem buscar?
- A culpa também é do capitalismo. Não podemos também repassar "o valor da tarifa" apenas para a conta das organizações política, sindicatos e entidades de classe. De fato, há um projeto político de avanço das forças conservadoras que não foi construído de um dia para outro (o anticomunismo pelo Rosário) capitaneado pelos setores neopentecostais que foi estimulado por organismos e agências internacionais e que se ampara em tradições e costumes conservadores. Um exemplo dessa luta intestina, foi a atuação de organismos ligados ao golpismo do IPES/IBAD que protagonizaram o malfadado golpe de 1964 e por exemplo, ajudaram a organizar as Marchas da Família (naquele contexto, católicas principalmente, salvo engano).
- Cultura que dialoga. As denominações neopentecostais (que são as que mais crescem e se consolidam) conseguiram plasmar/sintetizar práticas muito díspares e contraditórias da cultura e da religiosidade brasileira. Vejam o uso de elementos de outras religiões de matriz africana sendo acionados, ainda que não se ressaltem essas referências. Ao conseguirem "ler" de maneira difusa e traduzir de modo necessariamente mais amplo, uma "cultura popular" (ao seu modo), conseguem estabelecer canais de diálogo com os significados das tradições de classe. É quase como retraduzir uma experiência de classe num sistema de significados, valores e ideias estável (e organizado pela instituição religiosa). Perguntei uma vez a um companheiro militante porque o peronismo sobrevivera tanto tempo na argentina e ele me respondeu: "porque o peronismo é tudo". Essa capacidade elástica de um determinado conjunto de significados se apropriar e retraduzir uma experiência de classe difusa se opõe a grupos de esquerda cada vez mais restritos, com linguagem e tradições específicas (geralmente limitantes. com vocabulários próprios e que só militantes compreendem).
- Desconhecimento teológico e preconceito com a religião. Há também ao meu ver uma sobrevalorização por parte da esquerda das possibilidades fascistóides de determinadas agremiações. Com isso não estou dizendo que o significado dado por essas instituições religiosas neopentecostais não seja conservador (evidentemente é) ou que não possa descambar abertamente para as fileiras do fascismo. Mas se não entendermos esse campo como um campo de disputa, vamos jogar mais gasolina no fogo. O neopentecostalismo sempre se nutriu de um inimigo a se combater (primeiro o comunismo, agora os direitos lgbtt's etc). Não me parece inteligente engessar de maneira irredutível a polarização, sem atacar o adversário por dentro. Construir um discurso apocalíptico ("O Estado Islâmico chegou") dentro dos esquemas religiosos que trabalham com as oposições simbólicas é pura burrice. A questão é: como disputar esse setor da classe (não me refiro a disputar a instituição). Acrescente a isto, o fato que a esquerda em geral tem uma relação precária, ambígua ou simplesmente preconceituosa com a religião. A direita não, é geralmente bem pragmática neste sentido. Enquanto a esquerda diz: disputem os sindicatos, os centros acadêmicos, pelas costas afirma: saiam da igreja, "é ópio do povo" e abre uma avenida para a direita.
Não reclame quando o exército marchar na sua porta.

Por: Rafael Viana

quinta-feira, 5 de março de 2015

Roswitha Scholz: a emancipação das mulheres e a superação do capital

 




 
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Em 1846, veio à luz um artigo de Marx que, infelizmente, passou quase despercebido aos seus posteriores discípulos e críticos: Sobre o suicídio, uma brochura de algumas dezenas de páginas que analisava situações de suicídio, a maioria de mulheres, ocorridos na França, durante aquele período histórico singular. O filósofo mostrava em seu texto como o capitalismo era uma formação social que oprimia não somente os trabalhadores, mas indivíduos das mais diversas origens e segmentos sociais. Entre as vítimas “não-proletárias” levadas ao desespero e ao auto-aniquilamento pelas pressões da sociedade burguesa, estavam, sobretudo, as mulheres. Na visão de Marx, era a opressão sócio-político-econômica do capitalismo, articulada à, nas suas palavras, “tirania familiar” (patriarcal) – que permitia aos homens tratar suas esposas como objetos -, que levava as mulheres à trágica decisão de liquidar com suas próprias vidas. O suicídio, nesse contexto, foi interpretado pelo pensador alemão como uma espécie de protesto contra uma condição bárbara e degradante, e por esse motivo deveria estar isento de todo e qualquer tipo de julgamento moralista ou condenação preconceituosa. Para Marx, uma “sociedade” que pratica atrocidades desse teor não merece nem mesmo ser chamada de sociedade, pois “mais parece uma selva habitada por feras selvagens”. Esse artigo constituiu-se, naquela época, numa crítica radical e sem concessões da subordinação feminina e da natureza opressiva do tipo de organização familiar vigente na sociedade capitalista. Em nosso tempo histórico, por sua vez, pode se converter em material fecundo para instigar um rico debate sobre a relação das lutas feministas com todos os outros movimentos organizados que têm por objetivo a emancipação humana. Nesse sentido, então, vale a pena perguntar: de que modo podemos entender a articulação que existe entre a ordem dominada pelo capital e a opressão das mulheres? Roswitha Scholz (1), filósofa alemã que se debruça sobre tais questões há mais de trinta anos, tem muito a nos ensinar a respeito. De acordo com sua teoria, no capitalismo, diferentemente de outros tipos de sociedade, a formação do valor (que constitui, segundo ela, a essência da relação-capital e que exige, pois, para sua efetivação, subordinação hierárquica e discriminação material e psíquica) envolve sobretudo uma relação sócio-psíquica específica, onde certas “qualidades, atitudes e sentimentos avaliados como menores (sensualidade, emocionalidade, fraqueza de caráter e de entendimento etc.) são projetados sobre ‘a mulher’ e dissociados pelo sujeito masculino, que se constrói como forte, realizador, concorrencial, eficiente e por aí afora [grifos em negrito nossos]”. Se essa teoria for correta, ela está repleta de uma série de implicações políticas, tanto para os que lutam contra a exploração do sistema do capital, quanto para os que buscam o fim da opressão de gênero e da desigualdade prática que existe entre homens e mulheres, pois demonstra que esses dois combates, para serem vitoriosos nos seus propósitos, devem ser realizados de uma forma articulada e coerente. Sigamos, pois, para nosso esclarecimento, o raciocínio sutil da filósofa.
Roswitha Scholz quer compreender a relação entre o capitalismo e o patriarcado, entre a formação social onde predomina a produção do valor e a violenta sujeição que os homens realizam sobre as mulheres. Com esse intento, entabula uma profunda investigação a fim de verificar as várias formas de expressão da dominação masculina nas sociedades ocidentais ao longo da história.
O patriarcado é, para Scholz, uma criação cultural e histórica. O patriarcado ocidental, ligado à forma-valor, teve sua origem, segundo a filósofa, na Grécia antiga, e persistiu durante o Império Romano. Nessas sociedades, as condições específicas vigentes fizeram surgir uma esfera pública que os homens tomaram como exclusividade sua.
“As mulheres atenienses viviam exiladas em casa, de onde deveriam sair o menos possível. A principal tarefa da mulher era conceber um filho; caso isso não ocorresse, sua vida teria sido em vão. A hipóstase da nova esfera pública, que exigia a conduta abstrata e racional, andava de mãos dadas com a degradação da sexualidade em geral. A ascensão do pensamento racional associou-se já desde o berço à exclusão das mulheres. A esfera pública, de quem também fazia parte a formação cultural, necessitava (na figura da esfera privada) de um domínio que lhe fosse contraposto, para o qual pudesse olhar do alto de sua posição. O homem precisava da mulher como ‘antípoda’, no qual ele projetava tudo o que não era admitido no âmbito público e nas esferas adjacentes. Assim, já na antiga Atenas, a mulher era tida e havida na conta de lasciva, eticamente inferior, irracional, intelectualmente pouco dotada etc. – atributos esses que permaneceram em vigor até à modernidade [grifos em negrito nossos]”.
Na Idade Média, condições históricas diversas fizeram com que desmoronasse a antiga diferenciação entre esfera pública e privada. Scholz afirma que, na sociedade medieval, chegaram a subsistir mesmo resquícios “semimatriarcais” no seio do patriarcado, especialmente entre as tribos germânicas, onde as mulheres desfrutavam de uma espécie de “significação mística”. A própria figura da bruxa não era vista de antemão como negativa, pois se considerava que, se a magia poderia resultar em algo “mau”, também era capaz de produzir algo “bom”. Nesse período, a mulher era juridicamente subordinada ao marido e podia até ser negociada como escrava ou cabeça de gado. Mas, por outro lado, também tinha a possibilidade de dedicar-se ao comércio e ocupar-se de um ofício fora do ambiente doméstico (isto na chamada Alta Idade Média). Além disso, possuía ainda uma certa autoridade no interior da família e tinha a chamada “última palavra” como administradora do lar.
No início da Idade Moderna, a condição das mulheres foi dificultada drasticamente. Isso se deveu ao “renascimento” do antigo mundo cultural grego e às respectivas mudanças nos fundamentos da sociedade.
“Embora os estágios evolutivos da Idade Média sejam bastante diversos no que respeita às mulheres, sendo muitas vezes contraditórios e avessos a uma imagem uniforme, podemos observar no início da Idade Moderna que a situação das mulheres piorou a olhos vistos, como dão prova as repressões por elas sofridas em todos os âmbitos sociais. Quanto mais se desenvolvem uma esfera pública supra-regional, uma jurisdição estatal e uma ciência institucionalizada, mais nítido se torna o papel marginal atribuído à mulher [grifos em negrito nossos]”. (Becker, apud Scholz)
As transformações desse período já deixavam entrever o capitalismo nascente e a conseqüente sociedade do valor. O “feminino” sofreu aí uma campanha da aniquilação. Se na figura da bruxa, que se fez presente na etapa histórica anterior, ela, a mulher/bruxa, mantinha uma relação “simpática” com a natureza (e até fazia as vezes de natureza, em certo sentido), agora, com o predomínio da racionalidade do homem moderno, tudo isso precisava ser reconfigurado. Não que a mulher perdesse essa associação com o místico e o natural. Mas, porque o próprio “natural” era concebido de forma diferente, como objeto de domínio. Nesse contexto, evidentemente, também a mulher precisava ser dominada. E a Igreja, por sua vez, contribuía enormemente para a sujeição do feminino. Como explica Scholz,
“Não se tratava apenas do fato de os homens expropriarem brutalmente a ciência medicinal empírica das mulheres; antes, o que estava em jogo era um projeto fundamentalmente diverso de relacionamento com a natureza. A fundamentação teórica é fornecida sobretudo pelo chamado Malleus maleficarum (O martelo das bruxas), de 1487, redigido pelos padres H. Kraemer e J. Sprenger. Pais da Igreja, poetas e pensadores antigos eram citados no fito de tornar plausível a inferioridade da mulher e sua predisposição à bruxaria e ao pacto com o demônio. Imputavam-se mais uma vez às mulheres atributos como inconstância, concupiscência, raciocínio débil, extravagância, perfídia e credulidade [grifos em negrito nossos]”.
A ética protestante, nesse período, também não foi nada benevolente com as mulheres. Para Scholz, a Reforma se empenhou em domesticar a mulher, fazendo com que ela levasse uma vida serena, amável, humilde, controlada pelo patriarcado e encerrada “no claustro do casamento”. (Lutero teria sido, nesse contexto, um dos principais responsáveis por tal concepção acerca do feminino).
Já a era do Iluminismo, por sua vez, deu novo impulso a essa “domesticação”. Apesar do fato de que alguns dos filósofos da época defendessem o projeto de uma emancipação igualitária entre os gêneros, tais concepções não foram capazes de se impor na prática, em virtude do peso do tipo de processos sociais nos quais estavam inseridas, “a saber, a progressiva socialização pelo valor”, como explica Scholz [grifos em negrito nossos]. Esse tipo de socialização exigia, segundo a filósofa, uma certa diferenciação dos papéis patriarcais entre os sexos, onde a mulher deveria destinar-se, “por natureza”, a ser não mais que esposa, dona-de-casa e mãe.
Note-se que, desde o princípio da Idade Moderna, é possível verificar a persistência e o acentuamento entre as esferas do público e do privado e a restrição da atividade da mulher a este último domínio. Scholz afirma que o período do Iluminismo, em especial, atribuiu a essa divisão uma nuance peculiar: a polarização de caráter dos sexos.
“Na medida em que à mulher se imputavam novas qualidades como passividade e emotividade (se bem que agora restritas ao círculo familiar burguês) e ao homem, por sua vez, a ação e a racionalidade no espaço público da incipiente sociedade industrial, ocorreu uma ‘polarização de caráter entre os sexos’. A mulher e a família deviam converter-se em pólos de oposição ao mundo externo cada vez mais dominado pela racionalidade instrumental. Cabia à mulher não apenas ser uma dona-de-casa exemplar, mas também tornar agradável a vida do marido com sua assistência, seus cuidados e seu interesse. Essas tarefas adicionais representavam uma inovação. À diferença dos primeiros patriarcados da Antiguidade, presos à forma-valor, em que o homem ainda encontrava sua satisfação na própria esfera pública, elas são testemunha do quanto a racionalidade patriarcal e do valor fugiu ao controle do homem nesse meio tempo, do quanto ele depende agora de um ‘bem-estar doméstico’ propiciado pela mulher [grifos em negrito nossos]”.
No século XIX, as cisões entre o feminino e o masculino e entre o privado e o público se aprofundaram. A “vocação” materna da mulher da sociedade burguesa acentuou-se ainda mais. O sujeito feminino recebeu a tarefa precípua de manter a família em equilíbrio, realizar os afazeres domésticos e dar cabo de tudo que tivesse um cunho mais pessoal na vida conjugal, ao passo que o homem, que tinha no âmbito público seu locus “natural” de atuação realizadora, foi talhado para atividades produtivas em múltiplos campos: ciência, tecnologia, cultura etc. Este século, contudo, assistiu a proliferação de vários movimentos feministas (muitos deles burgueses) que exigiam a modificação das condições de existência das mulheres. Essas lutas se prolongaram no século XX (especialmente em sua segunda metade) e deram a impressão de que a relação entre os sexos estava a sofrer grandes mudanças, com as mulheres transcendendo o espaço doméstico/privado no qual os homens queriam lhes confinar a todo custo.
Ora, pergunta-se Scholz: na contemporaneidade a situação das mulheres estaria melhor? Aqui, há que se ter um pouco de cuidado e atenção para ir além do aparente e de suas conseqüentes conclusões precipitadas. Para a filósofa alemã, o que se verifica hoje é, na verdade, uma contradição muito mais aguda do que a que ocorria em épocas anteriores. Para entender como isso se dá, é preciso que nos detenhamos brevemente sobre sua teoria do valor-dissociação. De que trata, pois, tal formulação? Scholz parte de uma compreensão crítica acerca das concepções de Marx sobre o que constitui a essência do capital.
De acordo com o pensador alemão, o capital é um sistema que se realiza pela valorização do valor. Para que esse processo ocorra, mercadorias precisam ser produzidas e trocadas no mercado. Nesse contexto, é uma condição sumamente necessária que as mercadorias tenham um valor de troca. No mercado, as trocas de mercadorias só se realizam por valores equivalentes. Ou seja, uma mercadoria só pode ser trocada por outra de mesmo valor. Mas o que é que determina o valor de uma mercadoria? Para Marx, não é nenhuma característica física capaz de satisfazer certa necessidade humana (isto é, o seu valor de uso). O valor das mercadorias só pode ser formado pela presença nelas de um elemento que seja comum a todos os tipos de mercadorias. E qual é esse elemento? Numa palavra, o trabalho humano. Nas palavras de Marx (1978, 74-5), “quando consideramos as mercadorias como valores, vemo-las somente sob o aspecto de trabalho social realizado, plasmado ou, se assim quiserdes, cristalizado. […] os valores relativos das mercadorias se determinam pelas correspondentes quantidades ou somas de trabalho invertidas, realizadas, plasmadas nelas. As quantidades correspondentes de mercadorias que foram produzidas no mesmo tempo de trabalho são iguais. Ou, dito de outro modo, o valor de uma mercadoria está para o valor de outra, assim como a quantidade de trabalho plasmada numa está para a quantidade de trabalho na outra”.
Para gerar capital, o capitalista, em primeiro lugar, vai ao mercado e compra matéria-prima, instrumentos de trabalho e força de trabalho (que só pode ser fornecida por trabalhadores dispostos a vendê-la). Esses elementos (que são todos mercadorias) possuem um certo valor determinado (valor este que é definido pela quantidade de tempo de trabalho social passado plasmado nessas mercadorias, inclusive na força de trabalho). Quando os trabalhadores colocam em movimento esses meios de produção (os instrumentos de trabalho e a matéria-prima), o produto que daí surge possui um quantum de valor maior (porque no produto foram invertidas mais horas de trabalho social) do que aquele presente nas mercadorias no início do ciclo. Este novo valor é trocado no mercado por uma soma de valor exatamente equivalente à sua. Uma parte do valor em dinheiro obtido pela venda da mercadoria é destinada a repor as mercadorias originais (meios de produção e força de trabalho). A outra parte do valor (o valor excedente, a mais-valia) é apropriada pelo capitalista. Como a essência do sistema do capital é produzir valores para serem trocados no mercado, subordinando para tal fim as próprias necessidades dos sujeitos históricos (diz-se que o valor de troca subordina o valor de uso), ocorre que a formação do valor passa a funcionar por si mesma, automaticamente, fazendo das pessoas meros apêndices do processo de produção de mercadorias. É como se, então, o próprio capital se tornasse o “sujeito” e as pessoas os “objetos” desse circuito. (Mas como o capital não pode ser mais do que um pseudo-sujeito, diz-se que, na verdade, a sua realização ocorre a partir de um processo sem sujeito). A este fenômeno Marx denominou fetichismo. O movimento de produção do valor é eminentemente fetichista, pois o capital adquire propriedades de sujeito (se “humaniza”, isto é, passa a ser a fonte da atividade e a criar imperativos práticos de ação) e as pessoas adquirem características de objeto (se “coisificam”, isto é, viram objetos para o processo de produção de mercadorias).
No geral, Roswitha Scholz concorda com essa concepção de Marx, embora acredite que, no contexto contemporâneo, o trabalho abstrato (que é o que gera valor de troca, ao contrário do trabalho concreto, que é o que dá à luz valores de uso) esteja em “crise”. Isso não invalida, contudo, a teoria de que o capital é essencialmente um mecanismo centrado na formação de valor excedente. A filósofa acrescenta apenas que esse processo envolve especificação sexual. Ou seja, é um determinado patriarcado que produz as mercadorias e, nesse movimento, projeta sobre as mulheres certas características que serão dissociadas da formação dos valores. Isto já era visível no patriarcado grego (que mantinha atividades comerciais mercantis). E, mais ainda, do Renascimento em diante, quando os processos que envolviam a realização do capital foram novamente despontando no horizonte histórico e se consolidando a seguir. É nesse sentido, como afirma Scholz, que “o valor é o homem, não o homem como ser biológico, mas o homem como depositário histórico da objectivação valorativa. Foram quase exclusivamente os homens que se comportaram como autores e executores da socialização pelo valor. Eles puseram em movimento, embora sem o saber, mecanismos fetichistas que começaram a levar vida própria, cada vez mais independente, por trás de suas costas (e obviamente por trás das costas das mulheres). Como nesse processo a mulher foi posta como o antípoda objectivo do ‘trabalhador’ abstracto – antípoda obrigado a lhe dar sustentação feminina, em posição oculta ou inferior -, a constituição valorativa do fetiche já é sexualmente assimétrica em sua própria base e assim permanecerá até cair por terra [grifos em negrito nossos]”.
Essa dissociação na formação do valor foi responsável por uma divisão das esferas sociais entre público e privado, onde a primeira foi tomada como o campo “natural” de atuação dos homens, e a última, das mulheres. Na segunda metade do século XX, as mulheres conseguiram transcender em parte a clausura do lar e do ambiente privado imposta a elas pelos homens. Contudo, em nossos dias, onde, na visão de Scholz, a família tradicional nuclear tende a se dissolver, as mulheres ainda aparecem numa condição que ela chama de “duplamente socializadas”, isto é, responsáveis tanto pela família como pela profissão. Isto significa que as mulheres ainda aparecem como as principais responsáveis pelas atividades “reprodutivas” (próprias ao ambiente familiar) e, juntamente com isso, têm de desempenhar atividades profissionais nas quais ganham menos, recebem menos oportunidades de promoção e assim por diante.
É exatamente por essa razão que, segundo a filósofa, é errôneo dizer que em nossos dias o patriarcado se enfraqueceu. Para Roswitha Scholz, ele, na verdade, se asselvajou, pois, em nosso contexto, as mulheres, que são “duplamente socializadas”, também são, por conseguinte, duplamente oprimidas: ao venderem a sua força de trabalho e no âmbito doméstico. Vivemos hoje, portanto, o período do asselvajamento do patriarcado.
Como superá-lo? Ora, se se entende que esse patriarcado está relacionado com um tipo específico de atividade social, que tem na realização do valor o seu fundamento, a superação da dominação de gênero exige que se vá além exatamente desse modo de sociabilidade vinculada à produção de mercadorias, à produção de valor. Nas palavras de Scholz: “A fim de enfrentar a crise de modo produtivo, há que se constituir uma ‘esquerda feminista’ que tenha consciência tanto subjetiva e pessoal quanto objetiva e social do mecanismo de cisão [entre os gêneros]. Um feminismo nesses moldes não se pode dar ao luxo de restringir-se às mulheres e ao movimento feminista. Tanto homens quanto mulheres têm de compreender que ‘nossa’ sociedade é determinada pelo patriarcado e pelo valor. […] além disso, é urgente a luta feminista de ambos os sexos contra as formas de existência sociais, objetivadas e reificadas das cisões patriarcais produzidas pelo valor. A superação do patriarcado é ao mesmo tempo a superação da forma fetichista da mercadoria, pois esta é o fundamento da cisão patriarcal. O objectivo revolucionário seria portanto um grau mais elevado de civilização, no qual homens e mulheres sejam capazes de fazer pelas próprias mãos sua história, para além do fetichismo e de suas atribuições sexuais [grifos em negrito nosso]”.
A teoria de Roswitha Scholz é, evidentemente, muito mais rica e cheia de nuances do que esta exposição. Fica o convite para a leitura de seus textos, muitos dos quais estão à disposição, em português, no site do grupo intelectual do qual a filósofa faz parte, o Exit (http://obeco.planetaclix.pt/). Mais do que uma mera e imperfeita apresentação, este texto visou, sobretudo, realizar um convite à leitura da obra desta insigne pensadora, que nos recomenda que, tal como a crítica dos processos fetichistas do capital, também a crítica à opressão de gênero deve ganhar um lugar central em nossa agenda de lutas.
Nota:
1 – Todas as citações de Scholz que faremos aqui são do texto indicado na bibliografia. Os grifos em negrito e sublinhado são de nossa autoria.
Referências:
MARX, Karl. Salário, preço e lucro. In MARX, Karl, Os pensadores (Seleção de textos de José Arthur Gianotti). São Paulo: Abril Cultural, 1978.
MARX, Karl. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006
SCHOLZ, Roswitha. O valor é o homem – Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos. (1992) In http://obeco.planetaclix.pt/rst1.htm
Demétrio Cherobini é licenciado em Educação Especial (UFSM), bacharel em Ciências Sociais (UFSM) e mestrando em Educação (UFSC).
E-mail do autor: cherobini(0)yahoo.com.br”>cherobini(0)yahoo.com.br
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Texto de DEMÉTRIO CHEROBINI
Fonte: http://arlindenor.com/

O Brasil e as marchas de março

O Brasil e as marchas de março

Ouvi de um amigo agora pela manhã, falando sobre a marcha do dia 15, chamada pela direita brasileira: "Eu já não sei mais o que é esquerda, o que é direita". Eis aí um grande nó para a compreensão da realidade. Acreditar que não há mais diferenças na forma de pensar e agir sobre o mundo é cair numa armadilha de alienação. Sempre foram muito claros os conceitos de direita e esquerda. Ser de direita é apostar na conservação dos privilégios de poucos, é a postura da maioria dos mais ricos, por exemplo. Eles querem seguir controlando as riquezas do país, para delas tirarem proveito, querem dominar o espaço político, querem manter os mais pobres sob controle. Já ser de esquerda é lutar contra isso, garantindo participação para todos, direitos respeitados, o fim da opressão.

Pode parecer meio simplista explicar as coisas assim, mas de fato a coisa é mesmo simples. A sociedade está dividida em classes sociais. Uma, controla a produção e a outra vende seus serviços. Uma domina, outra é explorada. E é justamente sobre a exploração de uma classe que a outra garante seus lucros e sua vida boa. No meio desse processo as pessoas vivem uma sistemática batalha. Os que são explorados querem uma vida melhor, e os que exploram procuram não permitir que isso ocorra. Quando muito abrem mão de coisas pequenas, quando a luta se acirra, apenas para tentar acomodar as coisas. Mas, no fundo, segue apostando na manutenção dos privilégios.

A confusão sobre o que é ser esquerda e direita, em parte, foi provocada pelo próprio Partido dos Trabalhadores, hoje no poder político. Forjando toda a sua construção em pautas da esquerda, o partido chegou ao governo e passou a ceder passo aos velhos grupos da tradicional direita. Tudo isso dentro da chamada tentativa de governabilidade. Dilma, por exemplo, agora , nesse segundo mandato chegou ao cúmulo de entregar setores estratégicos como as finanças, a agricultura e a educação para figuras carimbadas da direita nacional. Difícil então não ficar confuso.

O fato é que esses malabarismo de governabilidade só alimentam o monstro. A elite brasileira é insaciável. Não lhe basta ter os setores estratégicos na mão. Ela quer tudo. Então, engordados pelo próprio governo, os velhos grupos de poder vão se fortalecendo, chegando ao ponto de pedirem o impedimento e a renúncia da presidente. As razões para isso - aparentemente - são as irregularidades na Petrobras. Argumentos bastante pueris e insustentáveis. Mas, apesar da fragilidade da consigna, esses grupos tem conseguido aglutinar pessoas que, mesmo no grupo dos explorados, por algum motivo "compram" a proposta da direita. Temos visto gente gritando pela volta do regime militar, argumentando que será só para tirar a Dilma, "depois eles entregam o país". Para quem? Ah, bom, isso não importa. Há uma completa falta de compreensão histórica. Os tenebrosos anos de regime militar, que tantos horrores causaram nos mais variados países latino-americanos parecem ter sido apagados da memória. Existe uma juventude que tampouco tem noção do que está dizendo quando chama a intervenção militar. É uma ingenuidade muito bem aproveitada pelos marqueteiros do golpe.

Agora, os movimentos sociais, cuja maioria estava adormecida e domesticada,começam, lentamente, a perceber que há uma grande batalha em curso. E procuram uma reação. Por isso estão chamando uma marcha para o dia 13, dois dias antes da marcha da direita. E, assim, o Brasil vai  realizar um exercício de manobras nas ruas, expressando claramente os interesses em jogo.

Na marcha do dia 13 estão os sindicatos de luta, os movimentos populares, as entidades de direitos humanos e civis. Estará a esquerda crítica e estarão também os que apoiam Dilma. Porque a pauta da marcha do dia 13 é uma pauta dos trabalhadores. As gentes marcharão em defesa da Petrobras, por reforma agrária, por demarcação de terras indígenas, pela democratização da mídia, pelo combate à corrupção. Será uma mobilização da esquerda, com propostas que visam a melhoria da vida de todos os brasileiros, especialmente dos empobrecidos e dos que têm apenas a sua força de trabalho para vender.

Já  a marcha do dia 15 é a marcha do golpe, da direita organizada e dos que, mesmo explorados, são seduzidos por um canto de sereia que promete mudanças. Mas, a mudança prometida é da manutenção dos privilégios e dos mesmos velhos grupos de poder. Sem matizes. Participar disso é apoiar o atraso.

Mas, para muitos, a marcha do dia 15 é unicamente o libelo contra a Dilma. Ora, eu também estou contra as políticas implementadas pelo governo Dilma. Mas isso não significa que, por conta disso, vou me aliar ao que há de mais nefasto nesse país. Como bem diz o professor Nildo Ouriques, o projeto petista esgotou. O que igualmente não significa que no seu lugar tenha que ser colocado o outro velho projeto - da direita - que também esgotou. Ou será que as pessoas não se lembram do que FHC causou ao país nos seus dois mandatos? Se hoje, o governo petista se assemelha àquele, qual é a saída? Constituir o novo! Rearticular as forças, combinar projetos de transformação, avançar, ir para frente.

Assim que não é necessário viver em confusão. Os clássicos elementos que diferenciam a direita e esquerda seguem vigentes. Pode-se dar outro nome para isso que alguns insistem em negar, mas o fato é que tudo é muito simples. Ou estamos caminhando junto com os trabalhadores, os explorados, os empobrecidos, ou estamos de mãos dadas com os poderosos, os exploradores, os que sangram a maioria em nome de seus interesses pessoais. Simples assim.

Por isso que nessas horas de acirramento da luta de classes não há espaço para vacilação. Temos de estar com os trabalhadores, ainda que alguns deles sigam tendo ilusões com o governo petista.   
 
Fonte: Palavras Insurgentes

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